Um alerta aos profissionais: os dez mandamentos da documentação

Moacyr da Silva

Professor titular de Odontologia Legal da Universidade de São Paulo; Coordenador do curso de pós-graduação em Deontologia e Odontologia Legal da FOUSP.

Em função da responsabilidade do cirurgião dentista, existem normas éticas e legais que o orientam no exercício de sua profissão. Dentre elas, as que dizem respeito à elaboração de receitas e atestados, ao preenchimento da ficha clínica, entre outras, demonstram a necessidade de haver um cuidado especial com a sua documentação em um tríplice aspecto: clínico, administrativo e legal, como chamam a atenção Ramos e Calvielli (1991). No aspecto clínico, a formação profissional e a vasta literatura odontológica oferecem os subsídios necessários para a elaboração dessa documentação; já quanto aos aspectos administrativos e legais, a documentação de todas as fases da atuação profissional é de suma importância e está intimamente relacionada com o aspecto clínico, podendo a falta ou falha dessa documentação comprometer a sua validade sob o aspecto legal.

É por essa razão que sugerimos que essa documentação passe a revestir-se das características de um prontuário, apto a desempenhar as funções acima referidas. O primeiro passo para a construção desse prontuário é o registro da anamnese. Para que o cirurgião-dentista, do ponto de vista jurídico, possa prevenir-se contra algum problema que diga respeito à documentação que deve manipular, em seu consultório, os dez cuidados principais são:

1-Registro da anamnese

Visando o desenvolvimento de um trabalho odontológico adequado, é necessário que o cirurgião-dentista conheça o estado geral do paciente, pois qualquer alteração na saúde deste implicará, de alguma forma, no bom resultado do tratamento, pois não podemos conceber a saúde bucal separada da saúde geral.
Para contornar eventuais problemas que possam surgir, é necessária a aplicação de um questionário, que deverá ser respondido e preenchido pelo próprio paciente o que, posteriormente, será aprofundado pelo cirurgião-dentista (não esquecer que o paciente ou o responsável deve assinar o documento).

2-Ficha clínica

A ficha clínica é um importante subsídio para o reconhecimento de pessoas vitimadas por catástrofes em que não podem contar com outros meios de reconhecimento, como também, para o cirurgião-dentista, quando chamado a colaborar com a justiça, poder apresentar esse documento que será confrontado com as condições bucais encontradas em corpos ou restos mortais submetidos a processos de identificação.

3 – Plano de tratamento

Para definir as consequências das fases de diagnóstico, terapêutica e prognóstico não deve utilizar o termo “orçamento” para os trabalhos a serem prestados na área da saúde, tendo em vista a imprevisibilidade da resposta biológica do paciente. Por essa razão é preferível utilizar a expressão “plano de tratamento”, que permite a modificação do plano inicial, quando necessário.
Tendo em vista que, em decorrência da possibilidade de efetivação de serviços odontológicos, com diferentes tipos de tratamentos e técnicas e cientificamente mais ou menos adequados, sugerimos, também, que no plano de tratamento sejam anotadas as alternativas para a realização de alguns procedimentos, para que o profissional possa resgatar as condições em que o tratamento foi realizado. É recomendável a discussão sobre as diferentes alternativas de tratamentos a serem oferecidas para que o paciente participe da escolha de melhor opção.
Além das anotações relativas ao estado do paciente, anterior ao tratamento, a ficha clínica deve refletir os atos clínicos realizados e materiais utilizados, as ocorrências detalhadas, como falta de colaboração, condições de higienização e outras que possam interferir no resultado esperado pelo paciente ou pelo profissional, porque poderão corroborar as alegações do profissional quanto à responsabilidade do paciente na não-obtenção de determinado resultado.

OBS: Devem ser explicitadas todas as alternativas sendo que o paciente ou o responsável colocará sua assinatura na alternativa com a qual concordar.

4 – Receitas

As receitas serão analisadas como um documento odonto-legal que terá sua cópia anexada ao prontuário do paciente.
O Código de Ética Odontológica (CEO) define as informações obrigatórias e as facultativas a serem inseridas no papel receituário. De acordo com os artigos 29 e 30 do CEO, essas informações restringir-se-ão a:

a) o nome do profissional;
b) a profissão;
c) o número de inscrição no CRO;

Parágrafo único. Poderão ainda constar:

I – as especialidades nas quais o cirurgião-dentista esteja inscrito;
II – os títulos de formação acadêmica strictu sensu e do magistério relativos à profissão;
III – endereço, telefone, fax, endereço eletrônico, horário de trabalho, convênios e credenciamentos;
IV – instalações, equipamentos e técnicas de tratamento;
V – logomarca e/ou logotipo;
VI – a expressão CLÍNICO GERAL, pelos profissionais que exerçam atividades pertinentes à Odontologia, decorrentes de conhecimentos adquiridos em curso de graduação.

Ainda achamos por bem que o profissional, além dos dados acima, inclua no receituário os relativos a outras inscrições, como:

CPF – Cadastro de Pessoa Física da Receita Federal.
CCM – Inscrição de Contribuinte do Cadastro Mobiliário (Prefeitura).
INSS – Inscrição no Instituto Nacional de Seguridade Social.

5 – Atestados odontológicos

Como os atestados constituem documentos legais e, para que não surjam problemas na Justiça, o cirurgião-dentista deve tomar alguns cuidados com a sua redação e quanto a oportunidade de oferecê-lo.

Vamos nos ater, agora, ao modus faciendi do papel receituário:

A primeira parte de um atestado é constituída pela qualificação do profissional, que faz parte do impresso (papel receituário) no qual vai redigir o atestado.
Na segunda parte virão a qualificação do paciente, sua identificação e a finalidade a que se destina, tais como fins trabalhistas, escolares, esportivos ou militares (e nunca para os devidos fins), podendo ser incluída a informação de que foi formulado o pedido do interessado.
Na terceira parte, o cirurgiã-dentista declarará que o paciente esteve sob seus cuidados profissionais, sem especificar a natureza do atendimento (quando exigida a sua natureza o profissional deve valer-se do Código Internacional de Doenças, cujos códigos de interesse para a odontologia encontram-se especificados), seguindo-se uma breve conclusão relativa às suas consequências (impossibilidade de comparecer ao trabalho; que esteve sob seus cuidados profissionais de tal hora a tal hora , ou então, que o mesmo deve guardar repouso por tanto tempo, quando necessário). O profissional deve ficar atento ao fato de que sua informação deve ser verídica, caso contrário poderá sofrer a imputação da falsidade ideológica, crime previsto no artigo 299 do Código Penal.

6 – Modelos

Além da função odontológica, os modelos podem constituir elementos de prova judicial. Como é difícil arquivar todos os modelos de próteses ou outros serviços odontológicos, recomenda-se a guarda, pelo menos, dos casos mais complicados, retirando-se uma xerox do modelo em gesso dos demais casos e anexando-a ao prontuário do paciente.

7 – Radiografias

É um material bastante disponível nos consultórios odontológicos, porém nem sempre arquivado adequadamente, pois, constantemente, ao serem requisitadas pelos peritos ou assistentes técnicos ou mesmo quando necessária a sua juntada para corroborar as alegações do cirurgião-dentista, este não as encontra no seu arquivo, porque “estão soltas dentro da gaveta do arquivo” e ele não pode precisar a quem pertencem ou porque não foram reveladas e fixadas adequadamente, tornando-se imprestáveis para esse fim.
As radiografias são, na maioria das vezes, importantes matérias de prova. Por isso chamamos a atenção dos profissionais para a necessidade de adotarem o sistema de duplicação das mesmas, preventivamente, ou na eventualidade de serem requisitadas pela justiça ou quando pedidas pelo paciente, fazendo a entrega da cópia, uma vez que representam o embasamento de atos operacionais realizadas pelo profissional.

8 – Orientação para o pós-operatório

Representam provas sobre o dever de cuidado. Podem ser elaboradas em impressos próprios ou não, sendo importante que sejam entregues mediante assinatura de recebimento, na cópia ou em livro de protocolo.

9 – Orientação sobre higienização

Também representam provas sobre o dever do cuidado. Podem ser elaboradas em impressos próprios ou não, sendo importante que sejam entregues mediante assinatura de recebimento, na cópia ou em livro de protocolo.

10 – Abandono do tratamento pelo paciente

O abandono do tratamento pelo paciente necessita ficar comprovado, com vistas à responsabilidade profissional. Na ocorrência de faltas ou quando o paciente deixa de agendar consultas programadas para a continuidade do tratamento, o cirurgião-dentista deve acautelar-se, expedindo correspondência registrada ( com aviso de recebimento) em que solicita o seu pronunciamento sobre as razões do impedimento. Na falta de resposta, a correspondência deve ser reiterada no prazo de 15 ou 30 dias, para que o abandono fique caracterizado. Essa convocação, nos mesmos termos e prazos, pode ser realizada também por telegrama fonado com cópia (que servirá como prova).

Considerações finais

O prontuário aqui preconizado pode ser realizado por todo e qualquer profissional, podendo ser modificado ou adaptado à sua administração do consultório, desde que atenda às exigências legais para poder ser reconhecido judicialmente. É possível, também, acrescentar ao prontuário básico radiografias panorâmicas, fotografias, vídeos, enfim, tudo o que constituir documentação odonto-legal.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Arbenz, G.O (1988) Medicina Legal e Antropologia Forense. Rio de Janeiro: Atheneu
2. Brasil (1966) Lei n 5.081, de 24 de agosto de 1966. Regula o exercício da Odontologia. Diário Oficial, Brasília.
3. Brasil (1973), Lei n 5.991, de 17 de dezembro de 1973. Dispõe sobre o controle sanitário do comércio de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos, e dá outras providências. Diário Oficial, Brasília.
4. Brasil (1991), Resolução CFO 179/91, de 19/12/91. Código de Ética Odontológica. Conselho Federal de Odontologia, Rio de Janeiro.
5. Brasil (1993), Decreto n 793/93. Diário Oficial, Brasília.
6. Brasil (1993), Resolução CFO 185, de 26/04/93. Conselho Federal de Odontologia. Rio de Janeiro.
7. Cardozo, H.F. e Calvielli, I. T. P. (1988). Considerações sobre as receitas odontológicas, Odont. Moderno. 8, 20-3.
8. Daruge, E.; Massini, N. (1978). Direitos profissionais na Odontologia. São Paulo: Ed. Saraiva.
9. Favero, F. * 1973). Medicina Legal, 9 ed. São Paulo, Martins.
10. Neder A C. (1976), Farmacoterapia para cirurgiões-dentistas. 5 edi. Piracicaba: Franciscana.
11. Ramos, D. L. P. e Calvielli, I. T. P (1991). Sugestão de composição de inventário de saúde do paciente. Ver. Odonto. 1, 42-5
12. Silva, M. Compêndio de Odontologia Legal, 1 edição, Rio de Janeiro (RJ), Ed. Medsi.
13. Silva, M. e Calvielli, I.T.P. (1984). Aspectos legais do exercício da Odontologia. In Endodontia: bases para a prática clínica, ed. J.G. Paiva e J.H. Antoniazzi, p.p. 229-37, São Paulo: Artes Médicas.
14. Silva, M.; Moucdcy, A; Reis, D. e Crosato, E. (1977). Um novo conceito em ficha odonto-legal. Ver. Ass. Paul. Cirurg.Dent. 31,5

Fonte: Moacyr da Silva

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